sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Do dinheiro e do labor

Subi no ônibus há uns dias atrás e me vi prestando grande atenção à conversa barulhenta entre motorista e cobrador. Nada de mais, tratava-se de um retorno ao lar, após um dia de labuta como outro qualquer. O veículo vazio evidenciava o período de recesso escolar, e o cobrador conversava lado a lado com o motorista, sobre um dos muitos assentos vazios que ali estavam.
Por preguiça de procurar o cartão, me sentei também à frente, anterior à catraca. Me arrependi, no entanto, com rapidez, dados os muitos decibéis com que os funcionários trocavam as palavras.

Falavam sobre o prêmio da Mega Sena da Virada e seus planos individuais para o uso do montante que poderiam ganhar. Na ocasião, devia estar acumulada em 100 milhões de reais, ou algo em torno disso.
Carlos, o motorista, era mais parcimonioso e parecia entender um pouco mais da dinâmica da aplicação financeira. Bruno, o cobrador, era mais espalhafatoso, aventureiro. Dizia que se ganhasse sumiria das redondezas, para que seus conhecidos não mais o fossem. Enquanto me encontrava no limbo entre o sono e o cochilo, anotava no inconsciente as aspirações de cada um, ao mesmo tempo que arquitetava, a um nível não tão inconsciente, meus atos sob a realidade de acordar com alguns muitos milhões em minha conta corrente.

Bruno era sempre o primeiro a falar. Jogava rápida e aleatoriamente as posses que adquiriria se ganhasse. Dizia que só "ia andar de máquina", que iria comprar uma fazenda e construir uma mansão, que iria pescar com seu barco. Curiosamente, dizia que viveria também somente do "juro". Estava em seus planos, ademais, comprar a SPTrans.
Carlos era econômico nas palavras, ouvia Bruno com paciência e balbuciava alguns sons, como se concordasse com o exposto pelo colega. Em alguns momentos refutava, explicando as dificuldades que Bruno enfrentaria caso passasse a controlar a empresa de transporte.
Não demorou muito a chegarmos no meu destino. Ainda relutante, procurei o bilhete na mochila e me arrastei até a porta de saída. O limbo em que me encontrava já começara a se definir, mas a hora pedia outra postura. Desci do veículo e tomei meu rumo.



É bastante interessante o que pensamos quando tomamos por dado que o dinheiro não é mais um fim em si, e sim um meio, uma fonte pseudo-infinita de bens materiais, disponível e pronta a ser usada. O trabalho, parte integrante, quase que indissociável, de nosso cotidiano, parece perder o sentido diante de tantos zeros na conta bancária.
Afinal de contas, por que trabalhamos? Qual a nossa relação com o ambiente de trabalho, com a empresa, com seus funcionários e com nossas responsabilidades?
A maioria trabalha por que precisa, por que prescinde do dinheiro para pagar as contas de sua residência, para garantir as condições básicas para sua sobrevivência. Todos temos planos, objetivos, vontades e sonhos. O dinheiro estará sempre lá, muitas vezes como fator limitante, como bem escasso, variável de decisão sempre presente. Se compramos ou não algo hoje é porque temos planos para o dinheiro em algum instante do tempo. A ciência econômica é clara nesse ponto. O dinheiro tem valor no tempo, seja teoricamente ou perceptivamente. Mas que valor teria se acordasse com 170 milhões em conta na manhã seguinte? Não seria tão absurdo pensar em não aparecer no trabalho. O chefe já não assustaria tanto.

Fico imaginando como deve ser se deparar com uma rotina- antes tão absoluta, tão onipotente- que não é mais necessária. Como deve ser optar por não ir trabalhar?
Enquanto uns dizem que a Mega Sena seria a solução para seus problemas, os casos noticiados pelos telejornais apresentam episódios de cobiça, vingança e inveja.

Penso que os 170 milhões não caberiam no site do banco. Ligaria para o Help Desk:
"Bom dia senhor, em que posso ajudar?"
"Bom dia. Os dígitos do meu saldo em conta ultrapassam as 10 casas, está aparecendo só R$ 170.000. Poderia verificar, por favor?"
"Senhor, só um instante, vou contatar o suporte técnico"
(Musiquinha do hold...)