domingo, 15 de março de 2009

Ora flor, ora náusea

Rasa e vazia é a minha compreensão do que nos faz viver essa vida, do que move cada ser humano e o põe a realizar suas obrigações diárias. E, quem sabe, resignar-se diante delas.

Acostumado à filosofia de boteco, me acomodei confortavelmente sobre os assentos do limitado terreno da ciência, que com suas metodologias, pressupostos e leis clama elaborar modelos perfeitos e necessários para explicar a dinâmica da sociedade.
De antemão deixo claro que não passo de um moleque, crente que sabe alguma coisa desse mundo. Se um dia entender um pouco de vinho tinto, harmonia funcional e política fiscal me darei por satisfeito.
Mas, por favor, não me venham com contratos sociais e axiomas da racionalidade. Nada disso procede agora.

Pelas ruas, o que se vê, ou o que se quer ver, é a barbárie e a mecânica infelicidade. A gente anda desvairadamente pelos corredores, cada um querendo chegar primeiro, querendo levar vantagem. Olham-se uns aos outros com desconfiança e investigacionismo; de pronto colocam-se na defensiva, com a premissa de que o ataque é a melhor defesa.

Param. O sinal está vermelho.

Na tentativa de adiantar-se alguns segundos, o sujeito tem suas pernas atingidas pelo parachoque da máquina. Tomba na avenida e morre na contramão, atrapalhando o tráfego.
Curiosos surgem às dezenas, com suas expressões e interjeições das mais diversas.
Desconcertados perante a cena, alguns outros adotam a postura da indiferença, enquanto aguardam resguardados em seus jornais e fones de ouvido. Já acostumaram-se às desconstruções.
O sujeito que dormia na sarjeta acorda com a súbita movimentação e, após verificar do que se trata, volta a dormir, encolhendo-se em seus panos.
Uns poucos param para ajudar na dramatização. É tempo de cuidar dos trâmites legais, basta assinar uns papéis que tudo estará resolvido.

Do outro lado da via, um sopro de humanidade. Um bebê ri, gargalha sob os braços de sua mãe, que o contempla num sorriso verdadeiro. Parecia estar feliz, parecia estar vivo. Inocente e livre da consciência de que o mundo é o que é; ignorante, mas dono de uma sabedoria muito maior do que a maioria de nós conseguiria compreender.
Sua risada é a flor que rompe o asfalto, é a garantia de que talvez essa vida ainda valha a pena.

De fato, vivo no chão da capital cinzenta, sobre o negro solo rígido e quente. Mas pacientemente aguardo, e avisto flores furando o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio. Sim, por ora me convenço de que vale a pena me pôr a realizar minhas obrigações diárias.



"Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo"

Álvaro de Campos

8 comentários:

Inaudita disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Érica Marin disse...

"Era feia, mas era uma flor".

Ainda que suburbana e desbotada, maldosa e maltratada.

Há colorido no preto e branco. Basta PERCEBER.

Ótimo texto e ótima citação!!!

amarelo disse...

gabriel, lindo texto! espero um dia voltar a ter essa inspiração pra escrever tão bem como vc. fais attention au passé composé, realmente b2 é punk. também estou dando b2 este semestre e já preparei psicologicamente meus alunos ;-)
bom, minha vida tá super corrida, trabalho a semana inteira e o fim de semana tento ficar em casa estudando (mas nao consigo nao ir ao cinema). ou seja, nao tenho vida social praticamente.
falar em náusea, vc já leu La nausée, do Sartre? ótimo livro. se puder, leia em francês.
bises et bon courage!

Unknown disse...

"avisto flores furando o asfalto"

elas estao aí meu caro.

preciso fala q eh um belo texto?

karol feeeea disse...

resignação.

aprendi essa palavra no primeiro ano do colegial, qndo a professora deu a maior bronca na sala por metade dela não saber o significado;

entre o primeiro colegial e o terceiro ano eu a vi mais umas duas vezes: a primeira foi num livro, nao lembrei seu significado, procurei no dicionario e prometi q nunca mais esqueceria.

a segunda foi na fuvest e adivinha... errei a questao por causa da resignação !
aaaaaaaaaaaaaaaaaaah
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaah
aaaaaaaaaaaaaaah

ainda volto na gv pra falar pra professora do primeiro ano o acontecido ;/

enfim,
mais um texto genial, gaab.

beijo =**

ps. vc vai no economiadas, né?

Daniela Rodrigues Badra disse...

Oi Gabriel, é triste a resignação e acostumar-se.
Eu procuro sempre uma flor,mesmo feia ;-)
E encontros-as...como a encontrei nesse seu texto...lindo!!!!
Beijo !!!

Érica disse...

Há 3 semanas que venho lendo o seu texto.. e ainda não sei o que expressar. As vezes sinto que sou apenas mais uma seguindo o fluxo do trafego, deviando de qualquer contratempo..outras vezes (e muitas por sinal) espero que tenha em mim essa criança... e que por algum momento tenha a sensibilidade e força pra quebrar o meu ovo de concreto que criei com o tempo.

não sei realmente oq pensar.. mas ainda consigo sentir (um pouco!!)!

bjoss

maria silvia disse...

Desde já quero deixar claro que sou apenas uma "burguesinha" que toma ades de maça no intervalo das aulas. Como plantar uma flor todos os dias? Às vezes, dou o meu lanche pra alguém! Às vezes, no ônibus, faço caretas pra uma criança pra ela sorrir. Às vezes, faço caretas pra adultos... eles não riem.
Você, às vezes, escreve num blog, às vezes, as pessoas lêem!
Acho que isso basta pra eu dormir hoje e acordar amanhã!
Beijos, querido!
Continue escrevendo!