Terminou na semana passada o julgamento do casal Nardoni (sim, meus caros, mais sobre isso). A sentença deferida pelo júri impôs a Alexandre Nardoni cerca de 30 anos de prisão, enquanto a outra ficou com algo em torno de 26 anos.
Ao longo da semana, muitos clamavam pela justiça, pela imparcial justiça que levaria ao ostracismo social um homem que, segundo afirmam, jogou uma criança indefesa pela janela, de uma altura consideralvelmente suficiente para levá-la ao óbito.
Eu pareço discordar da sentença, não? Pois digo que não discordo, mas tampouco concordo.
Afinal de contas, quem sou eu para julgar outro homem, que não tem absolutamente nada a ver comigo, um completo desconhecido, por um ato ainda menos conhecido e compreendido, tendo por base somente a saraivada de informações que me é "oferecida"?
Desculpe-me o leitor convicto de que a justiça foi feita - e que muito provavelmente tenha sido feita.
E não me ache de todo insensível, pois a foto da menina sorrindo também me desperta comoção.
Mas não posso deixar de expressar o que toda essa situação representa para mim.
Artificialidade.
Para além da justiça dos homens, que não me cabe aqui julgar, tudo, absolutamente tudo, me parecia artificial. Foi uma semana inteira de "casal Nardoni" nas manchetes dos jornais, nos enfadonhos programas tipo "Brasil Urgente", nos fatigantes programas vespertinos de variedades, nas revistas semanais de notícias, nos programas de entrevista, nos plantões, nas esquinas, nas mesas dos restaurantes, nos pontos de ônibus...
Acompanhava-se o dia-a-dia dos que se propuseram a presenciar o julgamento, às frentes do Fórum de Santana, como se fossem missionários da paz ou coisa parecida. Objetivamente, o que leva um sujeito que mora, a título de exemplo, em Minas Gerais, vir acampar às portas do purgatório? O que leva outros, estranhos à família e chegados da garota falecida, a pagarem de seus próprios bolsos por banners, faixas e camisetas?
Exceção feita aos estudantes de direito e categorias congêneres, os outros pareciam estar apenas festejando, celebrando algo que lhes disseram ser da maneira que acreditam.
"Por que você decidiu acompanhar de perto o caso?", pergunta a jornalista cuja face não aparece.
"Me familiarizei com a mãe, afinal todas somos um pouco mães", responde fulana.
"Me solidarizei com a família. Não podemos ficar parados diante dessa barbaridade", responde ciclana.
"Acho importante a manifestação aqui, precisamos chamar a atenção das pessoas", responde beltrano.
No dia do julgamento, a movimentação era grande, a raiva estampada no rosto dos que ficaram de fora do recinto. Alguns levaram fogos de artifício, afinal de contas, era preciso fazer barulho, cantar a vitória, estourar a garrafa de espumante.
Os telejornais transmitiram na íntegra as palavras do promotor, que com todo o seu juridiquês, encantou os ouvidos das famílias que acompanhavam o caso, grudadas da tela do aparelho. Queriam ouvir palavra por palavra, ter certeza de que os monstros seriam mesmo presos, que seriam julgados e condenados.
"É culpado! Eu sabia!", bradaram diversos pais e mães e avôs e avós e tios e tias e filhos e filhas espalhados pela cidade. Acordariam todos no dia seguinte, prontos a comentar com seus pares o sentenciado na noite anterior. E dormiriam todos na noite seguinte, a maioria já esquecera o casal Nardoni.
Artificialidade.
Artificialidade e superficialidade.
Artificialidade, superficialidade e espetáculo.
É assim que a mim se resume a situação. Parece essa a raison d'être desses casos nos tempos de hoje.
Mesmo sabendo que o casal não cumprirá nem um terço da sentença, fica no ar o sentimento de que a polícia fez seu trabalho, de que a justiça brasileira funciona, de que o país não está perdido.
Se a justiça, de fato, foi feita ou não, não faz diferença. O importante é acharmos que sim, dadas as peças que nos deram e a história que construíram.
Se o ceticismo está aqui exacerbado, é porque reluto em acreditar que os efeitos serão duradouros. É como se, para os poderes envolvidos, tais casos fossem ração, reabastecedores da confiança da opinião pública. À imprensa, agradecemos pela excelente cobertura e pela preocupação com a justiça. Às autoridades policiais, agradecemos pelo impecável trabalho de apreensão e pelas imagens dos acusados sendo lançados sem dó aos fundos da caminhonete, algemados e incapazes de ação. E finalmente, ao Judiciário, pela rapidez na resolução do caso e pela lucidez e visão ilibada dos jurados e dos envolvidos.
O sujeito oculto, deliberadamente empregado, fala por si só. Quem é o nós?
Lembremo-nos dos milhares de casos que acontecem periodicamente em São Paulo. E que, diferentemente do caso Isabela Nardoni, ficam sem solução. Caem no esquecimento, na podridão dos arquivos rotos das delegacias de polícia. Se diluíssemos o empenho e a vontade política, bem como a mobilização popular, entre esses milhares de casos, talvez as coisas fossem, ainda que um pouco, diferentes.
"No mundo realmente invertido, o verdadeiro é um momento do falso."
Guy Debord, em A Sociedade do Espetáculo