terça-feira, 30 de março de 2010

Acabou o show

Terminou na semana passada o julgamento do casal Nardoni (sim, meus caros, mais sobre isso). A sentença deferida pelo júri impôs a Alexandre Nardoni cerca de 30 anos de prisão, enquanto a outra ficou com algo em torno de 26 anos.

Ao longo da semana, muitos clamavam pela justiça, pela imparcial justiça que levaria ao ostracismo social um homem que, segundo afirmam, jogou uma criança indefesa pela janela, de uma altura consideralvelmente suficiente para levá-la ao óbito.
Eu pareço discordar da sentença, não? Pois digo que não discordo, mas tampouco concordo.
Afinal de contas, quem sou eu para julgar outro homem, que não tem absolutamente nada a ver comigo, um completo desconhecido, por um ato ainda menos conhecido e compreendido, tendo por base somente a saraivada de informações que me é "oferecida"?

Desculpe-me o leitor convicto de que a justiça foi feita - e que muito provavelmente tenha sido feita.
E não me ache de todo insensível, pois a foto da menina sorrindo também me desperta comoção.
Mas não posso deixar de expressar o que toda essa situação representa para mim.

Artificialidade.

Para além da justiça dos homens, que não me cabe aqui julgar, tudo, absolutamente tudo, me parecia artificial. Foi uma semana inteira de "casal Nardoni" nas manchetes dos jornais, nos enfadonhos programas tipo "Brasil Urgente", nos fatigantes programas vespertinos de variedades, nas revistas semanais de notícias, nos programas de entrevista, nos plantões, nas esquinas, nas mesas dos restaurantes, nos pontos de ônibus...
Acompanhava-se o dia-a-dia dos que se propuseram a presenciar o julgamento, às frentes do Fórum de Santana, como se fossem missionários da paz ou coisa parecida. Objetivamente, o que leva um sujeito que mora, a título de exemplo, em Minas Gerais, vir acampar às portas do purgatório? O que leva outros, estranhos à família e chegados da garota falecida, a pagarem de seus próprios bolsos por banners, faixas e camisetas?
Exceção feita aos estudantes de direito e categorias congêneres, os outros pareciam estar apenas festejando, celebrando algo que lhes disseram ser da maneira que acreditam.

"Por que você decidiu acompanhar de perto o caso?", pergunta a jornalista cuja face não aparece.
"Me familiarizei com a mãe, afinal todas somos um pouco mães", responde fulana.
"Me solidarizei com a família. Não podemos ficar parados diante dessa barbaridade", responde ciclana.
"Acho importante a manifestação aqui, precisamos chamar a atenção das pessoas", responde beltrano.

No dia do julgamento, a movimentação era grande, a raiva estampada no rosto dos que ficaram de fora do recinto. Alguns levaram fogos de artifício, afinal de contas, era preciso fazer barulho, cantar a vitória, estourar a garrafa de espumante.
Os telejornais transmitiram na íntegra as palavras do promotor, que com todo o seu juridiquês, encantou os ouvidos das famílias que acompanhavam o caso, grudadas da tela do aparelho. Queriam ouvir palavra por palavra, ter certeza de que os monstros seriam mesmo presos, que seriam julgados e condenados.

"É culpado! Eu sabia!", bradaram diversos pais e mães e avôs e avós e tios e tias e filhos e filhas espalhados pela cidade. Acordariam todos no dia seguinte, prontos a comentar com seus pares o sentenciado na noite anterior. E dormiriam todos na noite seguinte, a maioria já esquecera o casal Nardoni.

Artificialidade.
Artificialidade e superficialidade.
Artificialidade, superficialidade e espetáculo.



É assim que a mim se resume a situação. Parece essa a raison d'être desses casos nos tempos de hoje.
Mesmo sabendo que o casal não cumprirá nem um terço da sentença, fica no ar o sentimento de que a polícia fez seu trabalho, de que a justiça brasileira funciona, de que o país não está perdido.
Se a justiça, de fato, foi feita ou não, não faz diferença. O importante é acharmos que sim, dadas as peças que nos deram e a história que construíram.

Se o ceticismo está aqui exacerbado, é porque reluto em acreditar que os efeitos serão duradouros. É como se, para os poderes envolvidos, tais casos fossem ração, reabastecedores da confiança da opinião pública. À imprensa, agradecemos pela excelente cobertura e pela preocupação com a justiça. Às autoridades policiais, agradecemos pelo impecável trabalho de apreensão e pelas imagens dos acusados sendo lançados sem dó aos fundos da caminhonete, algemados e incapazes de ação. E finalmente, ao Judiciário, pela rapidez na resolução do caso e pela lucidez e visão ilibada dos jurados e dos envolvidos.
O sujeito oculto, deliberadamente empregado, fala por si só. Quem é o nós?

Lembremo-nos dos milhares de casos que acontecem periodicamente em São Paulo. E que, diferentemente do caso Isabela Nardoni, ficam sem solução. Caem no esquecimento, na podridão dos arquivos rotos das delegacias de polícia. Se diluíssemos o empenho e a vontade política, bem como a mobilização popular, entre esses milhares de casos, talvez as coisas fossem, ainda que um pouco, diferentes.

"No mundo realmente invertido, o verdadeiro é um momento do falso."
Guy Debord, em A Sociedade do Espetáculo

terça-feira, 23 de março de 2010

Nós e os fatos

Os fatos, seus relatos e suas versões são hoje abundantes. Não sei o que dizem os jornalistas, quando atiram seus dados estatísticos, a fim de comprovar a sua versão dos fatos, através de relatos pretenciosamente imparciais. Talvez afirmem que o número de assaltos que ocorrem todos os dias na capital seja da ordem das centenas, ou que os homicídios atinjam a casa das dezenas.
Quando da época das enchentes, por exemplo, falava-se em milhares de desabrigados, uns poucos mortos e outros tantos desaparecidos.
O desastre do Haiti no início do ano ilustra bem a questão. Muito provavelmente, o terromoto fora notícia na esmagadora maioria - senão na totalidade - dos jornais espalhados pelo mundo. Passa-se um tempo e a coisa arrefece, naturalmente. Afinal, a notícia se renova, novos jornais são impressos e novos tapes são rodados. Todos os dias somos brindados com informação fresca, recém-escrita. Se é importante ou não, deixe a cargo do editor-chefe. Fato é que é notícia, fato é que é fato.

A imprensa, em sua função precípua de informar, cria em determinados momentos, e talvez essa criação seja involuntária, bolhas de aparências. Atribui-se importância a esta ou aquela questão, em forma e intensidade variadas, num caráter quase cíclico.
Ora o que está na pauta são os escândalos em Brasília, ora é o trânsito, ora é o planejamento urbano, ora é a segurança pública.
E vai-se dessa forma absorvendo os fatos, seus relatos e suas versões, acostumando-se à premissa de que as coisas são como são.

Logo, os fatos vão se tornando simplesmente fatos, descolados da realidade em que, por definição, também estamos inseridos. É estranho pensar que casos de assassinato possam ocorrer na rua de casa, ou que perseguições policiais se deem na rua da padaria, onde vamos pegar o pão do café da manhã. E é mais estranho ainda pensar que pode ocorrer com nós mesmos, na segurança e privacidade de nossas casas.
Diante da televisão, reage-se pouco energicamente a um assassinato triplo. Em caso presencial, entretanto, o quadro muda de tal forma que já nos assustamos consideravelmente com uma briga entre poucos num bar qualquer. E por que isso acontece?
Numa região como São Paulo, de cerca de vinte milhões de habitantes, a chance de ocorrer algo é, em termos probabilísticos, bastante pequena. Mesmo considerando as discrepantes diferenças socioeconômicas, é difícil associar o que se ouve nos jornais com a própria realidade.
E esse aparente descolamento entre a realidade e o resumo jornalístico cria essa casca, esse abrigo, onde o mundo lá fora é horrível, perdido.

Não se trata de mudar o mundo, ou de adotar uma postura universalista, de querer ajudar todos de uma vez só. Muito pelo contrário, a postura de mudança vem à tona quase que somente quando sentimos na própria pele o que ouvimos nas manchetes.
Ter a propriedade ameaçada, a privacidade invadida ou a vida posta a fio são catalizadores da constatação de que algo precisa mudar, de que algo não está certo. E, posteriormente, quando recorremos às instituições que, por excelência, deveriam nos proteger dos "desvios do padrão social", o descaso e a burocratização mostram que, sim, existem. A revolta é, por extensão, automática.

Estamos longe de estar imunes ao que vemos nos jornais. Mas é preferível considerar-se como tal, até o que dia em que se prove à força o contrário.
Como lidar com isso? Aceitamos e aprendemos a com isso conviver? Tratamos como factual e recorrente, tal como os relatos jornalísticos? Como "coisas da cidade grande"?
A resposta não é de todo pronta, nem de fácil elaboração. Mas o que é certo que todos temos que continuar vivendo, de uma forma ou de outra.

terça-feira, 2 de março de 2010

A águia e sua renovação

Se antes falava do calor canino, hoje falo do frio simpático. Há pessoas que nunca estão satisfeitas com o clima. Ora chateiam-se com a sudorese excessiva, ora com o ar resfriado. Eu, pessoalmente, prefiro o frio do jeito que está.
Hoje  o post é sobre a águia, mas sem cientificismos ou pretensões realistas. Há controvérsias em relação à antiga história de que a águia passa por um processo de troca de bico, unhas e penas, por volta dos 40 anos. Não obstante, se encararmos o relato como uma parábola, podemos nele encontrar certa inspiração, e terminar a leitura com o esboço de um sorriso.





"A águia é uma ave que chega viver até 70 anos. Mas, para chegar a essa idade, ela tem de tomar uma séria e difícil decisão por volta dos 40 anos. Nessa idade, ela está com as unhas compridas e flexíveis, não conseguindo mais caçar suas presas para se alimentar. Seu bico alongado e pontiagudo já está curvo; suas asas estão apertando contra o peito, envelhecidas e pesadas em função da grossura das penas: e voar já está se tornando uma tarefa difícil! 
Então, a águia só tem duas alternativas: morrer...ou enfrentar um dolorido processo de renovação que irá durar 150 dias.Esse processo consiste em voar para o alto de uma montanha e recolher-se em um ninho próximo a um paredão, onde ela não necessite voar.
Após encostar esse lugar, a águia começa a bater com o bico contra a rocha até conseguir arrancá-lo. Após arrancá-lo, espera nascer um novo bico, com o qual vai depois arrancar suas unhas. Quando as novas unhas começam a nascer, ela passa a arrancar as velhas penas. E somente depois de cinco meses ela sai para seu famoso vôo de renovação. E poderá viver, então, por mais uns trinta anos.
Em nossa vida, muitas vezes, temos de nos resguardar por algum tempo e começar um processo de renovação. Para que continuemos a voar um vôo de vitória, devemos nos desprender de lembranças, costumes e outras tradições que nos causam dor. Somente quando nos livramos do peso do passado é que podemos aproveitar o resultado valioso que uma auto-renovação sempre traz."
- Compilado de diversos autores -