Os fatos, seus relatos e suas versões são hoje abundantes. Não sei o que dizem os jornalistas, quando atiram seus dados estatísticos, a fim de comprovar a sua versão dos fatos, através de relatos pretenciosamente imparciais. Talvez afirmem que o número de assaltos que ocorrem todos os dias na capital seja da ordem das centenas, ou que os homicídios atinjam a casa das dezenas.
Quando da época das enchentes, por exemplo, falava-se em milhares de desabrigados, uns poucos mortos e outros tantos desaparecidos.
O desastre do Haiti no início do ano ilustra bem a questão. Muito provavelmente, o terromoto fora notícia na esmagadora maioria - senão na totalidade - dos jornais espalhados pelo mundo. Passa-se um tempo e a coisa arrefece, naturalmente. Afinal, a notícia se renova, novos jornais são impressos e novos tapes são rodados. Todos os dias somos brindados com informação fresca, recém-escrita. Se é importante ou não, deixe a cargo do editor-chefe. Fato é que é notícia, fato é que é fato.
A imprensa, em sua função precípua de informar, cria em determinados momentos, e talvez essa criação seja involuntária, bolhas de aparências. Atribui-se importância a esta ou aquela questão, em forma e intensidade variadas, num caráter quase cíclico.
Ora o que está na pauta são os escândalos em Brasília, ora é o trânsito, ora é o planejamento urbano, ora é a segurança pública.
E vai-se dessa forma absorvendo os fatos, seus relatos e suas versões, acostumando-se à premissa de que as coisas são como são.
Logo, os fatos vão se tornando simplesmente fatos, descolados da realidade em que, por definição, também estamos inseridos. É estranho pensar que casos de assassinato possam ocorrer na rua de casa, ou que perseguições policiais se deem na rua da padaria, onde vamos pegar o pão do café da manhã. E é mais estranho ainda pensar que pode ocorrer com nós mesmos, na segurança e privacidade de nossas casas.
Diante da televisão, reage-se pouco energicamente a um assassinato triplo. Em caso presencial, entretanto, o quadro muda de tal forma que já nos assustamos consideravelmente com uma briga entre poucos num bar qualquer. E por que isso acontece?
Numa região como São Paulo, de cerca de vinte milhões de habitantes, a chance de ocorrer algo é, em termos probabilísticos, bastante pequena. Mesmo considerando as discrepantes diferenças socioeconômicas, é difícil associar o que se ouve nos jornais com a própria realidade.
E esse aparente descolamento entre a realidade e o resumo jornalístico cria essa casca, esse abrigo, onde o mundo lá fora é horrível, perdido.
Não se trata de mudar o mundo, ou de adotar uma postura universalista, de querer ajudar todos de uma vez só. Muito pelo contrário, a postura de mudança vem à tona quase que somente quando sentimos na própria pele o que ouvimos nas manchetes.
Ter a propriedade ameaçada, a privacidade invadida ou a vida posta a fio são catalizadores da constatação de que algo precisa mudar, de que algo não está certo. E, posteriormente, quando recorremos às instituições que, por excelência, deveriam nos proteger dos "desvios do padrão social", o descaso e a burocratização mostram que, sim, existem. A revolta é, por extensão, automática.
Estamos longe de estar imunes ao que vemos nos jornais. Mas é preferível considerar-se como tal, até o que dia em que se prove à força o contrário.
Como lidar com isso? Aceitamos e aprendemos a com isso conviver? Tratamos como factual e recorrente, tal como os relatos jornalísticos? Como "coisas da cidade grande"?
A resposta não é de todo pronta, nem de fácil elaboração. Mas o que é certo que todos temos que continuar vivendo, de uma forma ou de outra.
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