Lembro-me da primeira (e única, dada a extensão da obra) vez que li Shogun, de James Clavell. Certo capítulo, li algo que, a primeira vista, me pareceu absurdo. Por que porras o sujeito lá se matou por ter se desfeito da peça podre de carne que o Anjin-san ia usar para fins culinários, e que já vinha incomodando todos com os ares perfumados da putrefação? Tudo bem que se tratava de algo que era propriedade de um convidade do daimyo, mas a ponto de justificar um suicídio por parte de um criado...
Aliás, usei a palavra suicídio. O correto seria harakiri, em razão da palavra suicídio remeter a aspectos jurídicos próprios da sociedade ocidental. O que aconteceu não foi que o sujeito se matou, mas "honrosamente acabou com sua vida". É igual, mas é diferente. Com o tempo, e talvez algo mais, acostuma-se com isso.
Pois bem, esses dias peguei um livro de zen-budismo pra ler. Gosto dessas coisas. A religiosidade oriental me atrai muito mais que a ocidental, não sei por que. E, numa das páginas, achei um texto interessante, com um tema já exposto em textos anteriores no blog. Trata-se de uma palestra sobre "impaciência e ansiedade" que o mestre Philip Kapleau ministrou no centro zen-budista do qual faz parte. O texto faz parte do livro "Zen-Budismo: o caminho da iluminação".
"Por que medos e ansiedades emergem mesmo quando se está praticando concentradamente? Claro que pode haver vários motivos. Muitas vezes, pessoas preocupadas com o que farão de suas vidas dizem a si mesmas que há algo que precisam fazer, algum tipo de objetivo que elas necessitam alcançar, algum tipo de ambição que precisam realizar - idéias inculcadas por nossos pais ou nossas escolas. Ou então elas sentem que não tem um lugar apropriado no mundo. Sentem-se vulneráveis, carentes de proteção, facilmente lançadas em estados mentais atemorizantes. Anseiam pela integridade, por um lar, e, muitas vezes, isso se reflete em seus sonhos. É algo que pode se tornar muito doloroso.
Em primeiro lugar, precisamos perceber que a postulação de qualquer objetivo é irreal no sentido de que envolve viver no futuro. Existe sempre uma dualidade: estamos frequentemente pegando o momento presente e dividindo-o, deixando com isso de vivê-lo. Como o futuro ainda não chegou, estamos em uma espécie de terra de ninguém. Isso é uma grande fonte de ansiedade. Primeiro, precisamos aprender a abandonar essa tendencia a postular objetivos e a se entregar a fantasias a longo prazo. Isso não significa parar de planejar atividades que possam requerer planejamento, como cuidar dos filhos, das tarefas domésticas ou das exigências de um relacionamento. Estamos realmente falando de ambições a longo prazo, certos ideais fixos, em nossa mente, que sentimos que deveriam ser realizados, que nos impelem. Se formos capazes de viver no tempo presente, começaremos a ver que essas coisas se resolvem por si mesmas. Pode-se atingir um ponto, digamos, em que se sente a necessidade de maior instrução escolar. Aí você sai à rua e faz as coisas que o permitirão conseguir isso. Se você estiver apaixonado e quiser se casar, fará o que precisar para concretizar isso.
Muitas vezes você ouviu essa citação de Lao-tsé: "Não fazer nada, porém não deixar nada desfeito". Isso corresponde a dizer: "Esteja totalmente presente. Deixe as coisas emergirem de sua atenção e da atividade que brota dela, agora. Não aposte em planos a longo prazo; eles são todos irreais". Os japoneses têm um ditado: "O diabo ri de quem planeja para o ano que vem" ou algo semelhante. Embora isso possa parecer extremo, no fundo é a pura verdade."
Não sou budista, embora ache vários aspectos do budismo interessantes, principalmente do budismo soto-zen japonês. Mas o texto é de fato instigante, ainda que o discurso esteja um tanto passado.
"Não fazer nada, porém não deixar nada desfeito". Essa é uma frase que guardarei por um tempo.