terça-feira, 7 de julho de 2009

Impressões incômodas

Frédéric Chopin - Nocturne No.16 in EbM Op.55 No.2

 


Há pelos cantos da cidade gente de toda sorte. Uns com mais, outros com menos.
Da janela do ônibus observo de passagem os becos e cantos das ruas de São Paulo. Numa mesma viagem vê-se madames, judeus, pobres, ricos, mendigos, avós com seus netos, pais com seus filhos, filhos sem seus pais e netos sem seus avós.

Todos eles têm um objetivo imediato. Uns vão comprar banana da terra no supermercado, outros têm consulta com seus médicos de confiança, outros se dirigem aos bancos, exibindo seus cartões brilhantes, e sacam alguma quantia, outros estão em busca de um canto para estender a mão. Uns entram, e saem com sacolas. Outros, do lado de fora, colocam-se a olhar fixamente os que saem com suas sacolas. Uns sentam e comem. Outros sentam e dormem.
Muitas vidas se entrelaçam pelos cantos da cidade, muitos olhares são trocados.

As impressões atentam para essa pluralidade de realidades.

Nos corredores do mercadinho, mãos se estendem em direção ao mesmo saco de chá.
- "..."
- "Pode pegar, eu prefiro esse aqui do lado."
- "Obrigado. Não deixe a água ferver muito, se não o chá não fica bom!"
Podemos nunca mais nos encontrar, mas por um momento tivemos a intenção de pegar o mesmo saco de chá, eu e aquela senhora cujo nome não perguntei. Ela foi ao caixa 3, eu ao caixa 5. Minha compra deu R$ 21,60. A dela não faço a menor idéia. E sumimos no meio da multidão.

Do outro lado da rua, um quarteto de cordas tocava peças barrocas, fazendo parar alguns e outros transeuntes, dos quais uma limitada parcela deixava alguns trocados no case de violino. Parei um pouco para apreciar, o som era muito agradável. Um lembrete de que tenho coisa parecida em casa, mas que há tempos não ouço. Deixei R$ 0,75 sobre as notas amassadas. Pouco, mas era isso ou R$ 10,00, e por que optei pelos centavos não sei bem responder. Apesar da quantia irrisória, me agradeceram, esboçando sorrisos que julguei verdadeiros, respondi com um aceno e segui meu curso. Há tempos não sentia tanto respeito sendo mutuamente compartilhado.
Bem aventurados, mas mal afortunados aqueles que trilham o caminho das artes.

Senti sede, olhei ao redor e vi a barraca de sucos. Faziam com a fruta inteira, casca e tudo. Eram bastante desorganizadas as pessoas espremidas na barraquinha sentada sobre o asfalto. Pai, mãe, filha, irmã e outras que falhei em identificar. Algum ruído se iniciava do meu lado.
- "Moça, seu suco!", dizia a trabalhadora mais jovem.
- "Eu não falei que queria sem açúcar!!", esbravejou a gorda mulher após levar o copo aos lábios.
- "Ai moça, desculpa, mas aqui fazemos todos com açúcar..."
- "Todos com açúcar, isso não existe! Isso que dá um bando de preto inventar essas coisas!!"
De súbito, a mulher jogou o suco no balcão e saiu. A menina, enrubrescida, foi para um canto se recuperar do ocorrido. Quem sabe se ela conseguiu...
Talvez tenha sido um dia ruim pra a mulher também, talvez algum parente seu tenha morrido, ou ela foi despedida. Um observador externo pouco sabe. Mas uma coisa eu posso dizer, que nada, nada justifica o tratamento dispensado à garota.

Tendo terminado meus afazeres, já era hora de ir embora. Naquela hora, pensei na senhora que me deu conselhos sobre o preparo de infusões. Pensei nos músicos, cujas vidas não devem ser nada fáceis, mas que mesmo assim ainda fazem o que fazem. Talvez por amor à arte, talvez por não terem outra escolha. Pensei na família que se esforça sobre-humanamente nos finais de semana para preparar sucos e levar uns trocados para casa. Pensei na gorda mulher e na sua atitude covarde de atirar o suco ao balcão. E pensei em mim, que tinha vindo até ali para comprar umas revistas, um pacote de chá, um vidrinho de pimenta coreana que havia prometido ao meu irmão e alguns biscoitos para dividir com alguém especial.



E, de repente, pensei em todas aquelas pessoas que fazem das calçadas suas camas, que fazem da sarjeta seus sofás e das pontes seus tetos. Pensei em todas aquelas pessoas que fazem de doses de pinga seus comprimidos para dormir. Em pessoas desprezadas, ridicularizadas e até temidas. Em fantasmas, seres zumbis a vagar pelas ruas, a nos importunar diante das janelas dos carros, pedindo trocados e demonstrações de pena e consideração.

Nós!
Quem somos nós? Quem sou eu?
Quem sou eu para ter pena de gente como eles? Quem sou eu para dar trocados? Quem sou eu para me importar?
Quem sou eu para achar que sou alguém...
Quem sou eu para achar que sou alguém para poder falar deles...para poder falar por eles...

Mais uma vez me sinto incomodado com a situação. Mais uma vez reajo da mesma forma. Mais uma vez o garfo com arroz e feijão que minha mãe prepara fica pesado.
De onde vem esse incômodo, essa culpa? De onde vem essa tristeza diante da condição alheia? E, pior, de onde vem essa falsidade diante do incômodo?
Não sei nada desse mundo, mas escrevo. Escrevo com a aparentemente autoridade de alguém que crê ter poder para um dia ver um outro mundo, mas que descrê das próprias ações, como se fugisse de uma responsabilidade pré-definida.


(...)

E pensei em mim, que tinha vindo até ali para comprar umas revistas, um pacote de chá, um vidrinho de pimenta coreana que havia prometido ao meu irmão e alguns biscoitos para dividir com alguém especial.
E pensei na minha única reação diante da janela do ônibus, indignação covardemente reduzida a duas palavras.

"Que merda..."

7 comentários:

Dani disse...

Eu me sinto: incomodada e pequena... Mas ainda tenho esperança, amigo!
bjos

Érica disse...

"Não serei um poeta de um mundo caduco." - foi o que veio na minha cabeça quando li o seu texto. O mundo está tão do avesso não?

Pri Datri disse...

Ainda acho que o que falta para a nossa sociedade é pensar mais no outro. Nessas férias vi alguns filmes mas ontem um me chamou bastante a atenção, chamava crash e mostrava diversas faces de um mundo preconceituoso. Mais uma vez pude notar que não importa o que aconteça ainda continuo acreditando que todos tem um lado bom e generoso. E hoje na novela (só nas férias posso ver novela haha) um dos personagens que já tinha sido rico viu-se no lugar de um vendedor que em outro momento havia insultado.
Ainda espero conhecer muitos olhares diferentes, que passaram por vidas diferentes e tem um jeito todo particular de enfrentar o que chamamos de vida.

Beijos

Déia disse...

Vc sempre me surpreende! Seu texto é fantástico! É a pura indignação estampada na nossa cara, é a certeza da impotência escancarada.
Eu sofro com cada saída que faço, eu sofro com cada criança no farol, cada pessoa dormindo no chão,cada cachorro perdido andando de um lado pro outro, procurando comida...
E o que podemos fazer? Eu não tenho condições de dar esmolas pra todos, não tenho casa pra oferecer, muito menos um bom emprego pra indicar...me sinto mal...dou um pacote de bolachas, dou um cobertor, adoto uma criança nos estudos, mas..adianta?
E o que mais me revolta e ver políticos pouco se lixando, comprando seus castelos e roubando cada vez mais o dinheiro que é nosso, e que talvez pudesse fazer algo por eles...
Resumindo: Que merda

maria silvia disse...

Ah deu vontade de compartilhar isso: Essa semana saimos e uma amiga levou seu filho de 5 anos. Como de costume, fiquei super amiga dele! ADORO! Num determinado momento ele me perguntou apontando pro meu amigo que tem cabelo black power: -"Por que o cabelo dele é assim?". -"Assim como?". -"Pra cima." - Porque tem gente que tem cabelo pra cima que é enrolado e gente que tem cabelo pra baixo que é liso... cada um tem um cabelo diferente". Ele mexeu um pouco no cabelo do meu amigo, no dele e depois no meu... observou os cabelos do resto do pessoal que tava com a gente... e voltou a correr entre as mesas com seu hipopótamo de pelúcia.

Daniela Rodrigues Badra disse...

Oi Gabriel,
QUE BOM QUE AINDA HÁ GENTE QUE SENTE COMO EU E VC E NÓS QUE TE LEMOS...SE CADA UM FIZER UM POUQUINHO ,PODEMOS SIM, AJUDAR EM ALGUMA COISA, SÓ DEUS SABE A ALEGRIA QUE O MÚSICO QUE RECEBEU SEUS 75 CENTAVOS SENTIU...
NÃO É O DINHEIRO, SABE, É A INTENÇAO...
O CARINHO, O OLHAR E O INCENTIVO QUE ELE TALVEZ TENHA ESPERADO HÁ MUITO TEMPO E QUE NÃO TE PREÇO...
UM BEIJO ENORME, GAROTO SENSÍVEL, SEU CORAÇÃO NÃO CABE NO SEU PEITO!!!

João Pedro disse...

parabéns pelo blog. Tb tenho um. Sou novo no blogspot. Te achei através da Válvula Literária.